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sexta-feira, 20 de março de 2009

O AUGE É A DECADÊNCIA

CRÔNICA 36


Passeava com uma amiga pelo calçadão da orla, quando de repente ela me diz a seguinte frase: “Quando eu estava no meu auge...” Não fiz perguntas para não ser desagradável, mas fiquei intrigada com o que significava o tal auge. Parecia falar como uma pessoa pública, cujo “auge” é avaliado pelo sucesso de sua carreira, mas, em se tratando de uma pessoa comum, não entendi o que significaria auge.
Parece-me que bombardeados pela mídia sobre a vida de “celebridades” muitos de nós incorporam os padrões e os referenciais destas celebridades para suas vidas e usam expressões como o auge, o ciclo, a nova fase... Expressões comuns no discurso de um artista soam deslocadas na voz de um advogado, por exemplo. O que seria o auge de um professor? Ou a nova fase de um arquiteto? Ou o final de um ciclo de um bancário?
O fato de usarem tais termos é significativo. Estariam eles brincando de artistas, de personalidades públicas, como se estivessem falando para repórteres? De qualquer forma, o caso é sério e oferece muito material para os analistas. Não seria este discurso um modo de esconder (ou revelar) as frustrações e não realizações de quem o usa? Ora, eu finjo que tenho uma nova fase, que encerrei um ciclo, que tenho um auge etc...Ou seja, eu forjo uma identidade e uma história para mascarar as verdadeiras identidades e histórias que me são desfavoráveis. Como eu não fiz o sucesso que esperava, fabrico uma falsa história de sucesso ou fabrico desculpas razoáveis e até dignas de elogio por não ter feito o sucesso.
Digamos que eu justifique o meu não sucesso ou meu fracasso porque eu não quis me vender ao sistema, não me submeti aos desmandos do patrão, não prejudiquei a qualidade do meu trabalho, não abandonei a família, não trai princípios políticos ou religiosos.
A amiga em questão, embora tenha se formado em teatro, jamais atuou em peça alguma. Daí talvez falar como uma atriz de carreira, quando na verdade só trabalhou como funcionária pública, sem especificação profissional. Diria o analista que ela gostaria no fundo de ter sido atriz, mas, por alguma razão ou várias, desistiu da profissão. Insatisfeita com a atual atividade profissional, fala como se fosse a atriz que não foi e não é.
A fantasia nestes casos é mais do que explícita.
Mário de Andrade disse certa vez que “o auge já é a própria decadência”. Ele estava se referindo à literatura, mas a frase serve para qualquer situação. No discurso de minha amiga, o hipotético auge é a decadência da verdade e da autoaceitação. Daqui a 20 ou 30 anos, como será seu discurso? Se encontrar interlocutores novos, poderá fantasiar à vontade e criar histórias sobre sua vida que jamais aconteceram ou parecerá senil e louca para os conhecidos antigos.
O velho mote da vida que poderia ter sido e que não foi muito alimenta as conversas de velhos, estejam em asilos com outros velhos ou não. A vida não é recordada pelo que aconteceu, mas pelo que poderia ter acontecido. O velho tende a fabricar uma outra vida, como compensação pelo que não viveu.
Amigos, prestem atenção a seu discurso. Se você fala como se tivesse sido famoso um dia e não foi, cuidado. Você está se negando. Seja lá o que você foi ou é tem muito mais importância do que o ser que você não foi ou gostaria de ter sido. Viva a sua vida e não a sua hipótese.

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