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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009



CRÔNICA 8

O GESTO INFANTIL

Um vizinho confessou-me atordoado, ontem no elevador, que encontrara a mulher descascando o armário do quarto. Ele ficou tão sem jeito, que saiu do apartamento sem ser visto e se dirigia à garagem para ir sabe-se lá para onde. Estava tão chocado que desabafou comigo e depois pediu desculpas. Mas na verdade parecia pedir um conselho ou um ombro amigo. Queria entender por que uma mulher adulta descasca um móvel do qual não gosta apenas para estragá-lo mais ainda.
Sei que ele sai antes das sete para o trabalho e só volta à noite. Tem jeito de funcionário correto e dedicado e, segundo ele, é um marido atencioso e afetuoso, que se casou por paixão. Para ele é uma decepção flagrar a mulher destruindo os móveis da casa, como quem destrói a relação, a vida a dois.
Como não se trata de uma pessoa doente, o fato em si tem conotações mais sérias. Ela não é doida de rasgar dinheiro, como se diz. Como não gosta do armário, por achá-lo feio, pobre, ela o destrói, para que ele incomode mais. E toda vez que ela olhar para o armário descascado, ela se lembrará do marido e o culpará pelo estado do armário.
Qualquer estagiário de primeiro ano de Psicologia sabe disto, menos ela. Para ela, foi o marido que pôs um armário de segunda mão e feio ali de propósito, para desagradá-la, para contrariá-la. Com certeza, é o marido também que às escondidas torna o armário pior, para torturá-la esteticamente. É uma espécie de complô, elaborado antes do casamento com finalidade sádica.
O leitor razoavelmente inteligente poderia me perguntar por que aquela mulher, adulta e instruída, não dá aquele armário para alguma instituição de caridade, que ficará satisfeita com a doação, e compra outro, a seu gosto, para pôr no lugar.
Aqui entra em cena o nosso estagiário para responder. Se ela fizesse isto, estaria sendo de fato (e não só na carteira de identidade) adulta, estaria assumindo uma responsabilidade, ainda que pequena, na vida. E é sempre mais fácil destruir, e até mesmo se autodestruir, do que ser responsável. Certamente o armário descascado significa para ela um marido que não ama e um casamento fracassado, já para o estagiário seria mais aconselhável que ela abrisse o armário e se olhasse no espelho. Aí veria que a imagem de uma menina mimada de dez anos é mais desconfortável do que uma porta de armário descascada.

Katia Sarkis









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